
Um sábado, a caminho de Araraquara, decidimos almoçar no restaurante Ton's, que é do Tom, atrás do tradicionalíssimo Pau Seco, do gaúcho Beto que está reformando tudo, de maneira que teremos, logo, dois points diferentes, vizinhos. Tom estava para encerrar a cozinha, terminado o almoço, um telefonema da estrada interrompeu o gesto, ele nos aguardou. O interior tem dessas coisas, reforçadas pela amizade.
Duas da tarde, quando entramos na chácara o céu estava negro, quando nos sentamos, a chuva caiu. Escolhemos a mesa junto a janela, dessas janelas de guilhotina, de madeira, das velhas casas de Araraquara, janelas hoje substituídas por ferragens de alumínio sem graça. Caipiroscas geladas de lima e limão, ficamos em silêncio contemplando o aguaceiro. Dentro, quentinho, confortável. Fora, trovões, raios e tome água. A paz estava conosco.
O Ton's está num terreno bucólico, cercado de verde, decorado como a casa de nossa avó, tem jeito de uma fazendinha. De repente me vi nos anos 40, na minha casa, na avenida Guaianases, diante do fogão aceso. A janela da cozinha era frente ao fogão, eu ficava lendo e olhando a chuva, aquecido. A infância mergulhou dentro do restaurante.

Há momentos em que somos felizes. Aquele era um e sabíamos, o que aumentou a felicidade. Veio a sobremesa. Digo, vieram. De novo a sensação da avó, da tia, das doceiras araraquarenses. Das coisas que permanecem. Quatro ou cinco tipos de doces em tigelinhas para degustarmos quanto quiséssemos: doce de mamão, de laranja, de abóbora, as colheres batiam de encontro umas das outras (éramos quatro à mesa, Márcia, Maria Rita, Eda, a prima, e eu), em sons musicais. Foi quando soubemos. Aqueles doces tinham sido feitos pela Edna Nogueira.

Perguntem se algum dia ela se lamentou, disse que a vida era chata, complicada, entediante, rotineira, que nada vale a pena, sente dores aqui e ali! Acho que ela deve estar com 88 anos. Belíssimos. Perguntem se fica na cadeira de balanço, ou sentada na varanda, na janela vendo a vida passar, diante da televisão assistindo novelas, ou no portão para conversar sobre o nada e todo mundo. Perguntem, ela dirá: não tenho tempo de viver assim, tenho projetos e sonhos e alunos. E, claro, doces no fogão. Edna que nos ilumina e adoça. Sei, pode ser outro chavão, me concedam esse direito, hoje.
AGRADECIMENTOS: o texto original do renomado escritor Ignácio de Loyola Brandão foi publicado no jornal Tribuna Impressa, de Araraquara (SP), edição de 04/05/2008 (domingo). A republicação foi autorizada pelo autor, e também pela Fernanda Miranda, jornalista da Tribuna Impressa, que gentilmente encaminhou o material. Fica registrado um MUITO OBRIGADO do tamanho do mundo aos dois. E outro, ao Lucas Lima, magistral artista araraquarense e autor da caricatura do Ignácio de Loyola Brandão.
NOTA: Os irmãos Isabela e Rogério Mascia Silveira são responsáveis pelo blog do Ton's Restaurantes e netos, por parte de pai, da violinista Edna Nogueira. E do lado materno, são sobrinhos do Tom, proprietário do Ton's Restaurante. Resumindo, tá tudo em família!

PS - o segredo para o doce ficar delicioso, é retirar com uma colher toda a espuma branca em cima da geléia. E na imagem, o texto manuscrito é dela!